quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Acção livre?



"O homem habita no mundo: "Habitar" não é o mesmo que estar incluído no repertório de seres que existem no mundo, não é apenas estar"dentro" do mundo como um par de sapatos está dentro da sua caixa, nem sequer possuir um mundo biológico próprio como o morcego ou qualquer outro animal. Para nós os humanos, o mundo não é simplesmente entrecruzamento total dos efeitos e das causas mas a palestra cheia de significado em que actuamos. "Habitar" o mundo não é simplesmente "actuar" no mundo. E actuar no mundo não é estar apenas no mundo, nem movimentar-se pelo mundo, nem reagir aos estímulos do mundo. O morcego ou qualquer outro animal responde ao seu mundo de acordo com um programa genético próprio das necessidades evolutivas da sua espécie. Nós humanos, não respondemos apenas ao mundo que habitamos mas vamo-lo também inventando e transformando de uma maneira não prevista por qualquer pauta genética ( por isso as acções dos aborígenes australianos não são iguais às dos aztecas ou dos vikings). A nossa espécie não está "fechada" pelo determinismo biológico, mas permanece"aberta" e criando-se sem cessar a si própria, como referiu Pico della Mirandola. Quando falo de "criar" não me estou a referir a "tirar algo do nada", como um prestidigitador tira um coelho do chapéu aparentemente vazio ( digo "aparentemente" porque se trata de uma truque, um engano: ilusionismo), mas refiro-me a "actuar" no mundo e a partir das coisas do mundo...mas mudando em certa medida o mundo!
Nesta altura a questão importante é determinante o que é a acção e o que é agir. Um movimento corporal não é nem pouco mais ou menos o mesmo que uma acção: não é o mesmo "estar andar", que "ir dar um passeio". De maneira que as perguntas vitais a que a seguir temos que tentar responder são: que significa "agir"?O que é uma acção humana e como se diferencia de outros movimentos que outros seres fazem, bem como de outros gestos que os humanos também fazem? Não será uma ilusão ou um preconceito imaginar que somos capazes de verdadeiras acções e não de simples reacções diante do que nos rodeia, nos influencia e nos cosntitui?
Suponhamos que apanhei o comboio e paguei o meu respectivo bilhete. Durante o percurso vou distraído, pensando nas minhas coisas, sem me dar conta de que brinco com o pedacito do cartão, enrolo-o e desenrolo-o, até que finalmente o atiro descuidadamente pela janela aberta. Nessa altura aparece-me o cobrador e pede-me o bilhete: desespero e provavelmente a multa. Posso apenas murmurar para me desculpar:" Atirei-o da janela...sem me aperceber." O revisor, que é também um pouco filósofo, comenta: "Bom, se não se apercebeu do que estava do que estava a fazer, não pode dizer que o tenha atirado pela janela. É como ele tivesse caído". Mas eu não estou disposto a aceitar essa restrição: "Desculpe, mas uma coisa é que me tenha caído o bilhete e outra tê-lo atirado, mesmo que o tenha feito inadvertidamente." Parece que esta discussão agrada mais ao revisor do que multar-me: " Veja, "deitar fora" o bilhete é uma acção, algo diferente de que nos caia, que é apenas uma dessas coisas que acontecem. Quando alguém faz uma acção é porque uma dessas coisas que acontecem. Quando alguém faz uma acção é porque quer fazê-la, não é verdade? Mas em contrapartida as coisas acontecem sem querer. De maneira que como você quis atirar o bilhete podemos dizer que na realidade ele lhe caiu.". Revolto-me contra esta interpretação mecanicista: "Não e não! Poderíamos dizer que o bilhete me tinha caído se eu tivesse adormecido, por exemplo, ou até se uma rabanada de vento mo tivesse atrancado da mão. Mas eu estava bem acordado, não fazia vento e o que acontece é que atirei o bilhete sem querer." "Basta disse o revisor riscando o seu caderno com um lápis -, E se não o quis fazer, como é você sabe que foi você, exactamente você, quem atirou? Porquê "atirar" uma coisa é fazer uma coisa e ninguém pode fazer uma coisa se não quiser fazê-lo." "Pois sabe o que lhe digo? Atirei a porcaria do bilhete porque me deu na realíssima gana!" Multa à parte.
A verdade que existe uma diferença entre o que simplesmente me acontece (viro um copo com um safanão na mesa ao ir buscar o sal), o que faço sem me dar conta e sem querer ( o belo do bilhete atirado pela janela), o que faço sem me dar conta mas segundo uma rotina adquirida voluntariamente (como meter os pés nos chinelos quando me levanto da cama meio adormecido) e o que faço apercebendo-me e querendo (atirar o revisor bruscamente pela janela para que vá buscar o bilhete). Parece que a palavra "acção" é uma palavra que apenas convém à última destas possibilidades. É evidente que ainda existem outros gestos difíceis de classificar mas que à partida parecem qualquer coisa menos "acções": por exemplo, fechar os olhos e levantar o braço quando alguém me atira alguma coisa á cara ou procurar algo a que me agarrar quando estou quase a cair. Não decididamente um "acção" é apenas o que eu não teria feito se não tivesse querido fazê-lo: chamo acção a um acto voluntário. O "finado" revisor tinha portanto razão...
Mas como podemos saber se uma acto é voluntário ou não? Porque talvez antes de o levar a cabo pondero entre várias possibilidades e finalmente decido-me por uma delas. Claro que não é o mesmo "decidir-me a fazer algo" que "fazê-lo"."Decidir-se" é por fim a uma deliberação mental sobre o que quero realmente fazer. Mas uma vez decidido, tenho ainda que fazer. O que decido é o objectivo ou fim da minha acção, mas talvez não a própria acção. Por exemplo decido apanhar o copo e estendo o braço para o apanhar. O que é que decidi realmente fazer; apanhar o copo ou estender o braço? E qual é a verdadeira acção: apanhar o copo ou estender o braço? Se estendo o braço e deixo fora o copo posso dizer que agi ou não ? Ou agi "a meias"? (...) "
Fernando Savater, As Perguntas da Vida, Lisboa, Edições D. Quixote, 2000,2.º Edição,pp. 139 a 142


1. Partindo do texto de Savater, justifique o motivo " habitar" não simplesmente é simplesmente actuar.
2. Distinga, através de elementos presentes no texto o acto voluntário do involuntário.
3. Qual o significado da expressão "A nossa espécie não está " fechada" pelo determinismo biológico, mas permanece " aberta" e criando - se sem cessar a si própria."

(Retirado do site Netprof.)

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