terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Tolerância (II)


Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis. (…)
Uma coisa é afirmar que a tolerância jamais é ilimitada (somente a tolerância negativa é ilimitada; mas, por isso mesmo, acaba por desacreditar a própria ideia de tolerância); outra é considerar que, se ela deve ter limites, os critérios para fixá-los não devem ser os propostos por Marcuse.
O único critério razoável é o que deriva da própria ideia de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes. Essa era a razão pela qual Locke considerava que o princípio de tolerância não deveria ser estendido aos católicos, sendo também a que justifica hoje, na esfera da política, a negação do direito de cidadania aos comunistas e aos fascistas. Trata-se, de resto, do mesmo princípio pelo qual se afirma que a regra da maioria não vale para as minorias opressoras, ou seja, para aqueles que, se se tornassem maioria, suprimiriam o princípio da maioria.
Naturalmente, também este critério de distinção - que, abstractamente, parece claríssimo - não é de fácil realização na prática, como parece à primeira vista, e não pode ser aceite sem reservas.
A razão pela qual não é tão claro como parece quando enunciado reside no facto de que há várias gradações de intolerância e são vários os âmbitos onde a intolerância pode manifestar-se. Não pode ser aceite sem reservas por uma razão de modo algum negligenciável: quem crê na bondade da tolerância fá-lo não apenas porque constata a irredutibilidade das crenças e opiniões - com a consequente necessidade de não empobrecer, mediante proibições, a variedade de manifestações do pensamento humano -, mas também porque crê na sua fecundidade, e considera que o único modo de fazer com que o intolerante aceite a tolerância não é a perseguição, mas o reconhecimento do seu direito a expressar-se. Responder ao intolerante com a intolerância pode ser formalmente irrepreensível, mas é certamente algo eticamente pobre e talvez também politicamente inoportuno. Não estamos a afirmar que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente o valor ético do respeito às ideias alheias. Mas é certo que o intolerante perseguido e excluído jamais se tornará um liberal. Pode valer a pena pôr em risco a liberdade fazendo com que ela beneficie também o seu inimigo, se a única alternativa possível for restringi-la até ao ponto de a fazer sufocar, ou, pelo menos, de não lhe permitir dar todos os seus frutos. É melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver. (…)
A escolha entre as duas atitudes é uma escolha última; e, como toda a escolha última, não é facilmente defensável com argumentos racionais. De resto, há situações históricas que podem favorecer ora uma das opções, ora outra. Ninguém pensaria hoje em renovar a proibição dos católicos, como queria Locke, porque as guerras religiosas terminaram, pelo menos na Europa, e não é previsível o seu retorno. (…)
Devemos contentar-nos em dizer que a escolha de uma ou de outra solução permite distinguir entre uma concepção restritiva da tolerância, que é própria do liberalismo conservador, e uma concepção extensiva, que é própria do liberalismo radical ou progressista, ou que outro nome se lhe queira dar.(…) Onde a história destes últimos séculos não parece ambígua é quando mostra a interdependência entre a teoria e a prática da tolerância, por um lado, e o espírito laico, por outro, entendido este como a formação daquela mentalidade que confia a sorte do regnum hominis mais às razões da razão que une todos os homens do que aos impulsos da fé. Esse espírito deu origem, por um lado, aos Estados não confessionais, ou neutros em matéria religiosa, e ao mesmo tempo liberais, ou neutros em matéria política; e, por outro lado, à chamada sociedade aberta, na qual a superação dos contrastes de fé, de crenças, de doutrinas, de opiniões, deve-se ao império da aúrea regra segundo a qual a minha liberdade se estende até ao ponto em que não invada a liberdade dos outros, ou, para usar as palavras de Kant, "a liberdade do arbítrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal" (que é a lei da razão).»
N. BOBBIO, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, ed. Campos, 1992, pp. 212-216

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