quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A Liberdade em Sartre

Foto retirada de http://www-1.unipv.it/deontica/Gallpics/classici/Sartre.jpg


Quando falamos em que a existência precede a essência falamos essencialmente do existencialismo, pois este afirma o primado da existência sobre a essência, segundo a célebre definição do filósofo francês Jean-Paul Sartre: "A existência precede e governa a essência." Essa definição funda a liberdade e a responsabilidade do homem, visto que esse existe sem que seu ser seja pré-definido. Durante a existência, à medida que experimenta-se novas vivências redefine-se o próprio pensamento (a sede intelectual, tida como a alma para os clássicos), adquirindo-se novos conhecimentos a respeito da própria essência, caracterizando-a sucessivamente. Esta característica do ser é fruto da liberdade de eleição.
É evidente que a liberdade não se refere tanto aos actos e às volições particulares como ao projecto fundamental em que eles se encontram compreendidos, o qual constitui a possibilidade última da realidade humana, a sua escolha originária. O projecto fundamental deixa sem dúvida uma certa margem de contingência às volições e aos actos particulares, mas a liberdade originária é aquela que é inerente à escolha do próprio projecto. E é uma liberdade incondicionada. A modificação do projecto inicial é a todo momento possível. A angústia que, quando revelada, manifesta à nossa consciência a nossa liberdade, testemunha a modificabilidade perpétua do nosso projecto inicial.
Para Sartre a vida da é desprovida de sentido; nenhum objectivo consegue mais orientá-lo; ele existe como uma coisa, como todas as coisas que emergem, na experiência da náusea, na sua gratuidade e no seu absurdo: um sujeito sem sentido vê que não há sentido em todas as coisas e passam a faltar instruções para o seu uso. Tudo é gratuito, e quando acontece de nos darmos conta disso, revolta-nos o estômago e tudo se põe a flutuar, eis a Náusea.
Se a experiência da náusea revela a gratuidade das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas coisas, a análise desenvolvida em O Ser e o Nada revela, antes de mais nada, que a consciência é em primeiro lugar consciência de alguma coisa e de qualquer coisa que não é consciência. Sartre chama a este qualquer coisa de ser-em-si. O ser-em-si só pode descrever-se analiticamente como "o ser que é aquilo que é " expressão que torna clara a sua opacidade, o seu carácter maciço e estático devido ao qual não é nem possível nem necessário, é simplesmente. Relativamente ao ser-em -si a consciência é o ser-para-si, isto é, presença a si mesma. A presença a si mesma implica sua cisão, uma separação interior no ser da consciência. Uma crença, por exemplo, é como tal, sempre consciência da crença; mas, para a atingir como crença, é preciso de qualquer modo fixá-la como crença, separá-la da consciência, a que é presente. Separá-la através do Nada. Nada existe e pode existir a separar o sujeito de si mesmo. A distância ideal, o lapso de tempo, a diferença psicológica implicam certamente, como tais, elementos de positividade; mas a sua função é sempre negativa. O nada que surge no coração da consciência não é, mas sim foi. A consciência está no mundo, no ser-em-si, mas é radicalmente diferente do mundo, não está ligada ao mundo. A consciência, que vem a ser a existência, isto é, o homem, é portanto, absolutamente livre. O ser-em-si é o ser que é o que é; a consciência não é objecto. O ser pleno e completo; a consciência é vazia de ser, é possibilidade, e a possibilidade não é realidade. A consciência é liberdade.
A liberdade, segundo Sartre, é a possibilidade permanente daquela ruptura ou nulificação do mundo que é a própria estrutura da existência. "Eu estou condenado, a existir para sempre para além da minha essência, para além dos móbiles ou moventes e dos motivos do meu ato: eu estou condenado a ser livre. " Isto significa que não se pode encontrar para a minha liberdade outros limites além da própria liberdade: ou, se se preferir, que não somos livres de deixar de ser livres. A liberdade não é o arbítrio ou o capricho momentâneo do indivíduo: radica na mais íntima estrutura da existência, é a própria existência. Um existente que, como consciência, está necessariamente separado de todos os outros, já que esses se encontram em relação com ele apenas na medida em que existem para ele, um existente que decide do seu passado, sob forma de tradição, à luz do seu futuro, em vez de deixá-lo pura e simplesmente determinar o seu presente, um existente que se perspectiva através de algo distinto de si, isto é, de um fim que não é e que ele projecta no outro lado do mundo, eis aquilo a que chamamos um existente livre. Nós estamos perpetuamente ameaçados de nulificação da nossa escolha actual, perpetuamente ameaçados de escolhermos ser, e portanto tornarmo-nos, diferentes do que somos. A nossa escolha é frágil pelo simples facto de ser absoluta: assentando sobre a escolha a nossa liberdade, colocamos simultaneamente a sua perpétua possibilidade de tornar-se um aquém ultrapassado pelo além que eu serei. Certamente, a liberdade do projecto inicial não é a possibilidade de fugir ao mundo e anular o próprio mundo. Se a liberdade significa fugir ao dado ou ao facto, ela é o facto de o fugir ao facto. A liberdade permanece nos limites da factualidade, isto é, do mundo. Mas esta factualidade é indeterminada: a liberdade põe o mundo em ser com a sua escolha. Por isso o homem é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tudo o que acontece no mundo reporta-se à liberdade e à responsabilidade da escolha originária; por isso, nada daquilo que acontece ao homem pode ser dito inumano. As mais atrozes situações da guerra, as piores torturas não criam de facto um estado de coisas inumano. Não existe aí uma situação inumana: somente pelo medo, pela fuga ou pelo recurso a comportamento mágicos, decidiremos sobre aquilo que é inumano; mas esta decisão é humana e dela terei inteira responsabilidade. Sou eu que decido sobre a adversidade das coisas e até da sua imprevisibilidade decidindo de mim própria. Não existem casos acidentais: um acontecimento social que ocorre subitamente e me arrasta não é exterior a mim; se sou mobilizada para uma greve, esta é a minha greve, a minha própria imagem, e eu mereço-a. Mereço-a por que a escolhi, trata-se sempre de uma escolha.
É o homem, que se escolhe: a sua liberdade é incondicional e ele pode mudar seu projecto original ou inicial a qualquer momento. E, assim como a náusea constitui aquela experiência metafísica que revela a gratuidade e o absurdo das coisas, da mesma forma a angústia, como já dissemos, é a experiência metafísica do nada, isto é, da liberdade incondicional. Com efeito, o homem e só o homem é o ser para o qual todos os valores existem.
As coisas do mundo são gratuitas e um valor não é superior a outro. As coisas são desprovidas de sentido e fundamento e as acções dos homens são desprovidas de valor. Em suma, a vida é uma aventura absurda, onde o homem se projecta continuamente além de si mesmo, como para tornar-se deus. Escreve Sartre: "o homem é o ser que projecta ser Deus, mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que é, uma paixão inútil " .O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus. Deus não é senão este desejo mal sucedido. O ser-em-si do mundo e o ser-para-si da consciência se encontram num estado de perpétua ruptura com relação a uma síntese ideal que jamais existiu, mas que é sempre indicada, embora sempre impossível.
A liberdade consiste na escolha do próprio ser. E essa escolha é absurda. Assim o existencialismo sartreano afirmava a realidade dos homens, através da consciência como liberdade.

Sem comentários: